11/02


Acordou de um sono difícil, lento e pesado. Já não estava em sua cama.

Sentiu-se impressionado ao ver que não estava em sua casa, nem em sua rua, em lugar algum que lhe fosse familiar em um primeiro momento. Flutuava de ponta cabeça sob o céu noturno da cidade que ardia em luzes. Não sentia seu peso, nem o sangue que se acumulava na extremidade superior do próprio corpo. As únicas sensações reconhecíveis eram a da brisa que lhe soprava o rosto e a opressão que o acompanhava a meses. Uma melancolia repentina e profunda que o abatia de tempos em tempos, sempre que percebia a sua atual condição. Nada fazia sentido até então mas, pra quem sofre de depressão, certas sensações, mesmo aquelas que parecem te levar mais para baixo dentro de si ainda são melhores do que o vazio de costume. Ele se deixou embalar por esse flow suicida até não sentir mais nada.

Percebeu a leve turbulência e o corpo que flutuava passou a cair de cabeça em direção ao asfalto frio, mas era tudo mais rápido do que deveria em relação ao seu peso. Na verdade a queda por si mesma era muito mais lenta que o normal, mas os prédios com suas janelas ora escuras, ora iluminadas vinham de encontro ao corpo inerte. Carregavam consigo o chão, as calçadas e o mundo inteiro que acelerava em direção a colisão iminente, que não aconteceu. Nada nesse mundo acontece como deveria.

Quando o asfalto da cidade deserta alcançou o topo de sua cabeça sentiu que a própria testa, a frente do corpo, atravessava o quadro negro e levava consigo o que sobrara de si. Fechou os olhos por instinto por alguns segundos mas, quando tornou a abrir, olhou para cima e viu a metade de seu corpo que já atravessara a estrutura sólida. Olhou em volta e era um mundo novo, mas familiar ao extremo. Não se tratava de uma cidade ao contrário, nem de uma estrutura urbana no subsolo. Era abstrato, cinza, opressivo. Via a sua volta toda sorte de objetos de forma indefinida, que irradiavam em si sensações que não deixavam espaço para estranheza ou fascinação. Era tudo assombrosamente familiar, como se estivesse de volta ao quarto pequeno onde outrora tivera todos aqueles sentimentos e ideias. Era como se estivesse de volta ao lugar onde, a princípio, tinha ido dormir.

Um frasco com 20ml de clonazepam e mais uma cartela e meia de um antipsicótico que nem sabia o nome. Roubara de uma amiga com problemas parecidos e não deixou nenhum recado ou explicação aos parentes.  Os comprimidos foram a parte fácil: tirar um a um da cartela não foi um problema e a tarefa não o fez repensar o que fazia. O líquido, no entanto, tinha um gosto horrível e o fez revirar o estômago. Fez um esforço legítimo para não vomitar e foi deitar, na esperança de não acordar novamente.

Quando os pés terminaram a travessia, a sensação de queda se inverteu e ele agora subia pelo céu enevoado do mundo novo. Via no ar objetos líquidos acinzentados e disformes dançando devagar e enxergava em cada um aspecto viciado da sua vida. Sentiu o enjoo característico dos cigarros e o amargor do álcool. Enquanto subia,  revivia cada sensação, cada frustração, acumulada ao longo dos anos e que tomaram forma nas últimas horas. Não haveria mais espaço para o vazio costumeiro pois, a cada metro, revisitava as diversas impressões que o assombraram ao longo dos anos.
O topo não parecia representar o ápice de nada. Nada aqui era como deveria. Sem clímax, sem glória, nem dignidade. Não há honra nessas escolhas, nem alívio nessas sensações. Tudo que resta é a frustração de nada ser como você gostaria. Até que já não haver nada.




Comentários

  1. A vida é, simplismente nunca será como gostaríamos que fosse, pois não queremos nada, queremos simplesmente não existir pra não ter que vive-la, pois é tarefa árdua e nos seres humanos não nos agrada nada difícil, incompreensível, queremos ver, sentir para acreditar, não entendemos o sofrimento, não enxergamos como as coisas foram simples e positivas na nossa vida, tudo natural, apenas vemos o negativo, é de práxis do ser humano, seria bem melhor não ter nascido, mas estamos aqui, vamos viver, a vida é um espetáculo nos os atores, não quero ser um aqui na terra, se morrer serei no mundo espiritual, não vale a pena, melhor experar que tudo ocorra naturalmente, não existir é impossível

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